Quase 60% das crianças mortas por Covid-19 tinham comorbidades

Crianças saudáveis também são vítimas do vírus, que matou na infância mais do que qualquer outra doença prevenível com vacina

Por Cristiano Rodrigues 09/01/2022 - 17:02 hs

Crianças com algum fator de risco são as que mais morrem por Covid-19 no Brasil. Considerando-se o público de 0 a 17 anos, houve 1.272 óbitos durante a pandemia, o que representa 58,4% das 2.178 vidas perdidas nessa faixa etária. Mesmo sem nenhuma enfermidade crônica nem comprometimento imunológico, 906 crianças e adolescentes também entraram para a estatística. As manifestações de autoridades públicas que minimizam o impacto da Covid na faixa etária têm provocado a indignação das sociedades médicas, que advertem que a doença mata mais do que qualquer outra prevenível com vacina.

Quando se fala em comorbidades entre as crianças, no caso específico da faixa etária de 5 a 11 anos, que começará a ser vacinada no Brasil, 69% das 308 mortes durante a pandemia foram de crianças com comorbidades. Ainda que seja elevado o número de meninos e meninas com agravamento e óbito pela doença em razão de fatores de risco, há o debate entre representantes das sociedades médicas sobre seguir ou não a instrução do Ministério da Saúde de vacinar esse público mais vulnerável primeiro.

Embora a vulnerabilidade seja reconhecida pelos especialistas, de maneira geral, a questão logística faz com que haja divergência sobre a forma como o governo procederá ao vacinar primeiro a população pediátrica com algum fator de risco e, depois, iniciar a imunização por idade. O pediatra Marco Aurélio Palazzi Sáfadi, da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), por exemplo, defende a ideia de que a forma apropriada é vacinar primeiro aquelas com comorbidades, assim como ocorreu com a vacinação de adultos.

"Faz todo o sentido [vacinar primeiro crianças com comorbidades]. Numa situação de disponibilidade limitada de doses, que é o que vai acontecer, a gente tem que fazer com as crianças a mesma coisa que a gente fez com os adultos. Primeiro as crianças dos grupos de risco e depois a vacinação por faixa etária", afirmou. O pediatra ressaltou que os dados mostram que ter alguma comorbidade agrega risco no sentido de hospitalização e morte. De acordo com ele, os fatores de risco nas crianças não são exatamente os mesmos dos adultos mas, no geral, se repetem.

Na avaliação do pediatra e infectologista Renato Kfouri, consultor do Comitê Extraordinário de Monitoramento da Covid-19 da AMB (Associação Médica Brasileira), no entanto, a falta de levantamentos sobre quem são e onde estão essas crianças com comorbidades pode atrasar ainda mais a aplicação da vacina, motivo pelo qual acredita que realizar a campanha por faixa etária possa ser mais eficiente.

"Dessa maneira nós também vamos incorporando aqueles que têm comorbidade e, em um curto espaço de tempo, todos estarão vacinados, com ou sem essas doenças crônicas. Logisticamente falando, fica muito difícil implantar [a vacinação por comorbidade] porque nós nem conhecemos quais são esses denominadores, quantas crianças de 5 a 11 anos em cada município têm cada doença crônica. Infelizmente, esses dados não existem no país", pondera Kfouri.

O presidente da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações), Juarez Cunha, concorda com ele, lembrando que o país já trabalhou com a priorização de pessoas com comorbidades e que houve atraso em razão disso, mas que, na época, a escassez e a dúvida em relação às entregas eram um ponto que não possibilitou outra estratégia. "É mais prático fazer por faixa etária, ainda que a comorbidade seja um fator importante. No universo de 20 milhões de crianças, a minha opinião pessoal é que isso seria mais uma barreira, em tempos em que já há disponibilidade da vacina."

A previsão do Ministério da Saúde é entregar 3,74 milhões de doses ainda em janeiro e 20 milhões, no total, até março. A Pasta prevê a necessidade de dobrar a demanda, pois a Pfizer — vacina aprovada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para uso pediátrico — demanda duas doses. Já há, no entanto, previsão em contrato para requisitar mais doses, bastando o governo sinalizar a compra.

Doenças preveníveis por vacina

Em audiência pública para discutir a vacinação infantil, na última terça-feira, especialistas ressaltaram que, diferentemente do que se falava no início da pandemia, o potencial da Covid-19 nas crianças não pode ser comparado com o que o coronavírus faz com os adultos, mas sim com o que outras doenças preveníveis com vacina já fizeram com as crianças.

Na ocasião, Marco Aurélio Palazzi Sáfadi, explicou que esse é o ponto-chave da questão. "Creio que houve algum equívoco por parte de muitos de nós de nos distrairmos com uma característica intrigante da Covid, que é a desproporcionalidade de impacto da doença nos adultos em relação às crianças. Há um impacto muito maior nos adultos do que nas crianças, esse é um dado inquestionável. Mas isso nos tirou a atenção da relevância que a doença tem para a população pediátrica", argumentou.

O médico frisou que é um dado inequívoco que a Covid-19 matou mais crianças do que todas as outras doenças preveníveis por vacina. "As doenças imunopreveníveis têm hoje um impacto dramaticamente menor do que o da Covid", ressaltou.

O entendimento é geral entre especialistas, completa Kfouri. "Não há nenhuma doença prevenível por vacina, hoje, que mais traga hospitalizações e mortes que a Covid. Mesmo na era pré-vacinal — quando nós introduzimos vacinas de gripe, sarampo, catapora, febre amarela, caxumba, rubéola, meningite —, a mortalidade por essas doenças era infinitamente menor do que a por Covid-19", alerta.

Sáfadi citou como exemplo mortes por influenza em 2009, ano de pandemia da H1N1, e meningite meningocócica em 2010, antes da inserção da vacina contra a doença no calendário vacinal. "Mesmo no ano que mais matou crianças por essas doenças imunopreveníveis, nenhuma delas vitimou tanto as crianças como a Covid-19", explicou.

O pediatra ressaltou ainda que, ao falar de vacinação, não devemos pensar apenas na prevenção de óbitos. "Tem que lembrar também que o que norteia a recomendação de uma vacina não é só a prevenção da morte, é a prevenção da hospitalização, da sequela, da sobrecarga das unidades de saúde. Envolve também critérios econômicos, de qualidade de vida, tudo  isso é levado em conta ao produzir uma vacina. E esses aspectos todos da Covid são também dramáticos. São 34 mil hospitalizações de crianças e adolescentes desde que começou a pandemia. A gente tem uma série de elementos que corroboram para o ônus dessa doença no público pediátrico", pontuou.

Campanha antivacina

Kfouri, que também é presidente do Departamento Científico de Imunizações da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), ressalta que, ao contrário das dúvidas levantadas por autoridades federais quanto aos benefícios da vacinação, há "razões de sobra para vacinar as crianças", sejam elas éticas, sanitárias, epidemiológicas e protecionistas, tanto para a saúde individual quanto coletiva. "As vacinas são seguras, estão licenciadas no país e sendo utilizadas [em crianças] em mais de uma dúzia de países pelo mundo."

Kfouri lamenta a falta de incentivo à medida preventiva da doença e critica a postura dos líderes do governo. Ainda que, de março de 2020 a novembro de 2021, 308 crianças de 5 a 11 anos tenham morrido por Covid-19, segundo dados do próprio governo, o presidente da República, Jair Bolsonaro, disse, logo após a inclusão do grupo, não ter conhecimento de nenhuma morte nesta faixa etária pela doença e ainda questionou os interesses por trás da aprovação.

O próprio ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, não fez recomendação explícita da vacinação. Ao contrário, incentivou a população a procurar um médico antes de levar os filhos às salas de imunização, ainda que a prescrição médica não seja cobrada. "Lamentável que o lançamento de uma vacina seja quase que um pedido de desculpas, feito de maneira contrariada, constrangida, pelo ministro da Saúde, que deveria ser o primeiro a incentivar a vacinação", critica Kfouri, que acredite que, a despeito dos comunicados, a população brasileira confia nas vacinas.